sábado, 26 de março de 2011

Espelho

O velho observa, em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de estrada, a estrada com muita calma e paciência, e vê os transeuntes, que afirmam sobre ele tudo e nada. O velho já faz parte da paisagem, e eu diria mais, diria que ele é a própria, ele é si mesmo e sua cadeira, ele é seu olhar e as coisas sobre as quais tal olhar se volta, ele é concreto e asfalto e folhas secas do tempo de seca e poeira levantada pelos caminhões. Ele é o próprio transeunte...

O velho observa, em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de estrada, os transeuntes. Passam em carros luxuosos, bicicletas, em grupos de retirantes e em ônibus comerciais, tão diferentes, mas tão iguais em sua indiferença. Todos têm algo a dizer sobre a estrada: o motorista do carro de luxo informa seu patrão das más condições de infra-estrutura; o rapaz na bicicleta já não pensa muito sobre a paisagem, afinal, ninguém pensa mesmo sobre a paisagem que existe entre o trabalho e a casa, a beleza ou a não beleza só existe enquanto algo que escapa, a beleza não é coisa pertencente ao cotidiano, só há razão para se espantar ou surpreender com o que é extraordinário – é mesmo bem mais seguro que seja assim –, para ele a estrada é só o meio do caminho; os retirantes, bem, para eles, a estrada é paradoxal, ela é a fuga daquilo que eles mais amam e daquilo que os mata, ela é antes de qualquer coisa triste, suas folhas secas não permitem que eles esqueçam que este ano, São José não foi tão generoso; a menina na janela do ônibus comercial acha tudo lindo, a linha do meio fio, as cores, as nuvens, as formações montanhosas, a natureza puríssima...

O velho observa, em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de estrada, os transeuntes. Todos pensam que têm algo a dizer sobre a estrada, mas eles não sabem que somente podem dizer de si mesmos, e para tal fim, usam a estrada e também o velho. O velho não diz nada, e é talvez por isso o único que realmente conheça a estrada.

A estrada observa o velho em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de si mesma, pensa o velho, mas ele sabe que a estrada não existe. Então ele se contenta com a contemplação de si mesmo e inventa a estrada, as folhas secas, os automóveis e os motoristas e passageiros de automóveis, inventa também as pessoas que passam a pé e que pensam sobre o que o velho não é.

O velho observa, em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de estrada, um espelho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário