quarta-feira, 27 de abril de 2011

Quando Ele chega:

Chega uma hora em que o quase não satisfaz mais, e as coisas passam a precisar ser. Essa hora foi ontem. A intensidade tão expressa naqueles olhos, como vontade, pôde passar a ser possível no simples cotidiano, na simples relação de dois e não mais que dois – o que antes de ontem talvez fosse inimaginável...

Chega uma hora em que ela não aguenta e tira a roupa. Tirar a roupa é um ato interessantíssimo! É um momento de choque: quando vestida, não há surpresa, depois de nua não há surpresa – está tudo lá, todo mundo sabe o que há por baixo das saias e por dentro dos sutiãs e com o tempo a gente até se acostuma com a nudez. Mas a coragem de tirar a roupa, o momento em que se desabotoam os botões, isso, sim, choca, assusta, faz até parecer que nada havia daquilo ali – é preciso novos olhos para os momentos de “tirar a roupa”; será que Ele tem outros olhos guardados?

Chega uma hora em que as coisas perdem o gosto e a gente pode dar um gosto novo a elas. Não é a vida que é sem graça, a vida pode nem existir que não faz diferença. O gosto das coisas está simplesmente na capacidade que se tem de se iludir a si mesmo e aos outros, ou, de uma maneira menos pretensiosa, de se inventarem tais gostos para colocar nas coisas que também se inventam.

Chega uma hora em que ela desiste do poema. O azar do leitor é que o Ele não desiste dela – ela é condição para Ele existir, Ele precisa que ela O invente – então, caro leitor, não se sinta tão feliz que ela ainda há de escrever e, portanto, você ainda há de ler.

Chega uma hora em que...

Chega uma hora em que...

Chega uma hora em que Ele se cansa, daí, tenta fugir. Mas como isso demora um pouco, ficam as marcas dEle no sofá da sala e no corpo dela, o cheiro dEle no travesseiro, ficam as cicatrizes...

Como Ele chega,

Chega uma hora em que Ele vai embora, e só nos resta citar Moraes “(...) que seja infinito enquanto dure”, e viver a vida, e ser feliz.

terça-feira, 29 de março de 2011

Um segredo...

A menina entrou no quarto, trancou a porta, apagou a luz e sentou no chão, num canto encostando-se à parede. Juntou as pequeninas mãos em forma de concha, trouxe para junto da boca e sussurrou: “eu amo você”.

Depois disso, ela fechou as mãos apertando-as, palma com palma, junto ao peito e ficou possuindo seu segredo por toda a noite. O coração pulava, querendo sair de dentro, pulava alto mesmo, tão alto que ela o sentia subir pela garganta, subir como um nó, como várias fisgadas ao mesmo tempo em torno da parte de dentro do pescoço; e os olhos se molhavam – parecia que tudo queria sair de dentro. Mas nada disso importava de fato. O coração, as lágrimas, as entranhas, tudo podia fugir menos o segredo – que também queria sair de dentro.

Então, ele começou a pular como o coração, a vibrar mudo como as cordas vocais em choro desesperado, e foi se chocando contra as linhas das palmas das mãos, aquelas onde se escreve o destino, era isso, o segredo ecoava entre as mãos como um desejo que se choca contra o próprio destino. E como um desejo que se choca contra o próprio destino, mudou as linhas de suas mãos de lugar, apagou o que estava errado, e se inscreveu nas novas linhas das mãos da menina.

Na manhã seguinte, devido a um descuido por estar desfalecida em sono, o segredo escapou pelos punhos e braços, caindo por entre os poros da pele na corrente sanguínea e, consequentemente, nas vias respiratórias, para, finalmente, através dos olhos, fugir daquele corpo que o aprisionava. E todos que olharam em seus olhos depois que ela acordou sentiram meio que de longe e sem lógica a sugestão de um sentimento estranho, que não sabiam denominar. Amaram-na sem saber, assim como ela os amou sem saber.

sábado, 26 de março de 2011

Espelho

O velho observa, em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de estrada, a estrada com muita calma e paciência, e vê os transeuntes, que afirmam sobre ele tudo e nada. O velho já faz parte da paisagem, e eu diria mais, diria que ele é a própria, ele é si mesmo e sua cadeira, ele é seu olhar e as coisas sobre as quais tal olhar se volta, ele é concreto e asfalto e folhas secas do tempo de seca e poeira levantada pelos caminhões. Ele é o próprio transeunte...

O velho observa, em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de estrada, os transeuntes. Passam em carros luxuosos, bicicletas, em grupos de retirantes e em ônibus comerciais, tão diferentes, mas tão iguais em sua indiferença. Todos têm algo a dizer sobre a estrada: o motorista do carro de luxo informa seu patrão das más condições de infra-estrutura; o rapaz na bicicleta já não pensa muito sobre a paisagem, afinal, ninguém pensa mesmo sobre a paisagem que existe entre o trabalho e a casa, a beleza ou a não beleza só existe enquanto algo que escapa, a beleza não é coisa pertencente ao cotidiano, só há razão para se espantar ou surpreender com o que é extraordinário – é mesmo bem mais seguro que seja assim –, para ele a estrada é só o meio do caminho; os retirantes, bem, para eles, a estrada é paradoxal, ela é a fuga daquilo que eles mais amam e daquilo que os mata, ela é antes de qualquer coisa triste, suas folhas secas não permitem que eles esqueçam que este ano, São José não foi tão generoso; a menina na janela do ônibus comercial acha tudo lindo, a linha do meio fio, as cores, as nuvens, as formações montanhosas, a natureza puríssima...

O velho observa, em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de estrada, os transeuntes. Todos pensam que têm algo a dizer sobre a estrada, mas eles não sabem que somente podem dizer de si mesmos, e para tal fim, usam a estrada e também o velho. O velho não diz nada, e é talvez por isso o único que realmente conheça a estrada.

A estrada observa o velho em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de si mesma, pensa o velho, mas ele sabe que a estrada não existe. Então ele se contenta com a contemplação de si mesmo e inventa a estrada, as folhas secas, os automóveis e os motoristas e passageiros de automóveis, inventa também as pessoas que passam a pé e que pensam sobre o que o velho não é.

O velho observa, em sua cadeira de balanço na varanda de uma daquelas casas de beira de estrada, um espelho.

terça-feira, 15 de março de 2011

Compartilhando...

Entrar na Academia já entrei
mas ninguém me explica por que que essa torneira
aberta
neste silêncio de noite
parece poesia jorrando…
Sou bugre mesmo
me explica mesmo
me ensina modos de gente
me ensina a acompanhar um enterro de cabeça baixa
me explica por que que um olhar de piedade
cravado na condição humana
não brilha mais que anúncio luminoso?
Qual, sou bugre mesmo
só sei pensar na hora ruim
na hora do azar que espanta até a ave da saudade
Sou bugre mesmo
me explica mesmo:
se eu não sei parar o sangue, que que adianta
não ser imbecil ou borboleta?
Me explica porque penso naqueles moleques
como nos peixes
que deixava escapar do anzol
com o queixo arrebentado?
Qual, antes melhor fechar essa torneira, bugre velho…
        Manoel de Barros

domingo, 13 de março de 2011

Eros e Psique

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. 

(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio
Na Ordem Templária De Portugal)


Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
                                   Fernando Pessoa

Declaração

Uma pessoa
Um papel
Uma caneta
Tinta no papel
Texto

Uma pessoa
Um texto
Uma lembrança
Uma lágrima
Catarse

Uma pessoa
Outra pessoa
Um texto
Um sentimento
Declaração

Uma pessoa
Eu
Outra pessoa
Você
Um sentimento
Amor

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Escrito à luz de velas

Madrugadas mal dormidas precisam de utilidade. E sob essa desculpa, nasce um escrito à luz de velas...
Uma tentativa de...